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Imprensa, memória fraca e os crimes corporativos

A imprensa brasileira se caracteriza por exibir uma memória terrivelmente fraca. Isso quer dizer que ela, apesar de conhecer e divulgar fatos relevantes, rapidamente os esquece.

Alguns episódios recentes e outros mais distantes servem para ilustrar esta deficiência do chamado "fosfato de interesse público" que infelizmente acomete a mídia nacional.

No mês de fevereiro, muitos veículos importantes trouxeram à baila os inúmeros acidentes ocorridos com o Fox, um carro da Volks, e que provocaram mutilação comprovada em quase uma dezena de proprietários, em virtude de esmagamento do dedo pelo rebatimento do banco traseiro.

Evidentemente, como faz a indústria tabagista, a de agrotóxicos, a de saúde etc, a empresa creditou a culpa às vítimas, alegando que há explicações para o uso correto no manual do automóvel. Quer dizer, proclamou hipocritamente sua isenção no episódio, embora desde 2006, segundo matéria publicada no Estadão de 16/02/2008, até o presidente da República já soubesse do problema.

A questão nesse caso não é se o uso adequado está ou não no manual (todo mundo sabe que a leitura do manual não é comum para a maioria das pessoas) , mas no cuidado que devem ter as empresas para evitar acidentes com os usuários de seus produtos, sobretudo (e aí está a omissão severa da Volks) quando alguns deles já foram duramente vitimados. A pergunta que fica é: se havia um risco real (a Volks não ignorava os acidentes, não é verdade?) porque ela não tomou qualquer medida antes que a imprensa e as autoridades resolvessem investigar o problema? A empresa publicou no seu site ou em releases para a mídia alguma informação que pudesse alertar os consumidores e evitar novos casos? Por que ela não providenciou imediatamente a peça (uma borracha que funciona como um simples paliativo) para diminuir o risco? Por que não um pequeno anúncio (como gasta dinheiro com publicidade a indústria automotiva, inclusive estimulando a velocidade!) em respeito aos seus consumidores?

Em fevereiro deste ano, a Ford resolveu recolher perto de uma centena de picapes Pantanal porque descobriu (descobriu tarde, não é mesmo?) que elas tinham um problema gravíssimo de chassi. A empresa, segundo notícias da imprensa, alertou os proprietários dos carros com defeito de que, se eles não os devolvessem, ela ficaria isenta de responsabilidade sobre possíveis acidentes. Ou seja, coloca produto perigoso no mercado e parte de dedo em riste para os proprietários. Será que ela arriscou a ver repetido o caso famoso do Ford Pinto ocorrido na década de 80 nos EUA, um dos maiores crimes corporativos da história empresarial?

Em coluna anterior, já havíamos denunciado o problema sério do "recall" de automóveis em nosso País, com um número surpreendente (escandaloso) de chamamentos para troca de peças. Será interessante avaliar a proporção em que crescem os recalls e o incremento do volume de carros que as montadoras despejam carros na praça (somos já o sétimo país em produção de carros e de poluição automotiva). Será que a ânsia de vender tem tornado o controle de qualidade menos "controlado"? Será que efetivamente o controle de riscos é uma preocupação das fabricantes de veículos automotores?

A imprensa, ao que parece, já deixou de lado o problema, assim como colocou sob o tapete todos os recalls anteriores (e são dezenas e dezenas nos últimos anos), como se fosse comum produzir carros com defeito. Por que não uma investigação mais profunda nesse caso? Por que não exigir das autoridades maior responsabilidade dos fabricantes e puni-los exemplarmente a cada recall? Afinal de contas, em muitos casos, até a descoberta do problema, milhares de usuários têm corrido riscos e, após o aviso (uma mensagem quase sempre cínica e que invoca responsabilidade social às avessas!) vão ter o desconforto de buscar as concessionárias para consertar um defeito que veio de fábrica? Quão grande deve ser o lobby em Brasília (é comum ver autoridades e até o presidente Lula abraçado com os empresários do setor) para que , apesar dos lucros fabulosos, as montadoras continuem lesando os consumidores com seus produtos sem qualidade?

A imprensa não tem se esquecido apenas das montadoras. A retirada do mercado de medicamentos (alguns de grande consumo, como o Vioxx,) tem sido também cada vez mais comum e a imprensa necessariamente não se pergunta: o que está por trás dessas falhas contínuas em áreas tão críticas para a saúde da população? Afinal de contas, quem deve vigiar (FDA, Anvisa etc) está vigiando mesmo ou anda à mercê dos que produzem sem qualidade?

Embora esteja com a edição esgotada no Brasil, o livro Crimes corporativos: o poder das grandes empresas e o abuso da confiança pública, de Russel Mokhiber, publicado pela Scritta, em 1995, portanto há 13 anos, está mais do que atual. Lá encontraremos com facilidade os mesmos setores aqui apontados, envolvidos em crimes corporativos que causam arrepios. A Ford, a GM, a Nestlé, laboratórios farmacêuticos aos montes (você se lembra das aberrações provocadas pela Talidomida?) e também a indústria agroquímica (triste lembrança do caso Bhopal) estão lá. Quem quiser, pode ler também o capítulo sobre iniciativa privada e interesse público no livro Comunicação Pública, editado recentemente pela Atlas, onde reproduzimos alguns destes terríveis deslizes éticos.

A imprensa precisa ser mais investigativa e não noticiar crimes corporativos a partir apenas dos releases das empresas que os cometem. Ela precisa exigir mais responsabilidade e enxergar além da notícia. Ela precisa cobrar das autoridades uma ação dura contra as falhas recorrentes de fabricação e indicar caminhos, ouvindo especialistas em Direito e Defesa do Consumidor, para coibir essa moderna "farra do boi".

Pedir às empresas que sejam mais responsáveis é "enxugar gelo". Quando os lucros se sobrepõem ao interesse público, muito pouco pode ser feito. A ética e a responsabilidade empresarial continuam sendo, na maioria das vezes, apenas um discurso vazio, legitimado por campanhas publicitárias criadas por agências que também só são sensíveis aos seus bolsos cheios.

Os crimes corporativos precisam ser combatidos com vigor. As empresas têm de andar na linha. É nessa hora que se descobre a verdadeira missão de algumas organizações. Por isso, é preciso tomar cuidado: quem conhece, não confia. Nem nas empresas e na imprensa. Esta anda com a memória fraca de dar dó. Quem sabe, ela esteja mesmo mais preocupada com a espetacularização da notícia e a coleta de anúncios (as empresas que cometem crimes corporativos são também as maiores anunciantes, não é verdade?) do que com a defesa dos interesses da população. Rabo preso com o leitor, o telespectador? Vivemos no mundo do Big Brother, onde o sucesso está nos dias de "paredão". Esta é a verdadeira face de quem mascara os seus objetivos (altos lucros e programas de conteúdo apelativo) com as encenações do Criança Esperança.

Está na hora de a sociedade reagir a esta relação muitas vezes promíscua entre imprensa e interesses empresariais. Vamos cuidar da memória da imprensa. Fosfato nela.



Fonte: Por Wilson da Costa Bueno, in portalimprensa.uol.com.br

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