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A quem servem analistas unânimes

Reportagem maiúscula publicada pelo New York Times (NYT) semanas atrás denunciou estratégia do Pentágono para manipular a opinião pública norte-americana a seu favor na questão da guerra do Iraque.

Desde 2002 até o estouro do escândalo o Departamento de Defesa dos EUA beneficiava com informação privilegiada analistas militares com grande espaço na mídia, em troca de opiniões favoráveis às suas posições.

Além disso, a vasta lista de comentaristas aliciados é formada por ex-militares hoje ligados à indústria bélica, grande interessada no recrudescimento da situação.

O ponto grave da questão é que estes especialistas sempre foram apresentados como observadores independentes do conflito, por grandes emissoras como NBC, ABC, CBS, CNN e Fox. Eles dominaram a maior parte das análises nos últimos anos.

Também a Internet, rádio e mídia impressa deram vasto espaço a eles, diz o NYT (o próprio jornal afirma, com dignidade, que publicou ao menos 9 artigos destes analistas).

A reportagem ouviu vários comentaristas implicados entre os quais muitos confirmam o esquema do Pentágono. Alguns deles, inclusive, confessaram arrependimento por participar da manipulação.

A base da denúncia do jornal são 8 mil páginas de documentos internos do Pentágono que flagram a operação. O NYT entrou na Justiça para ter acesso a elas. O seu pedido foi acolhido.

Perplexo, o Congresso abriu investigações e passou a exercer forte pressão contra o governo. Primeiro resultado, dias depois o Departamento de Defesa anunciou que não vai mais passar informações privilegiadas a analistas militares.

Nota de coluna desta semana de Nelson de Sá, da Folha de S. Paulo, intitulada "O silêncio da televisão" dá conta de que, apesar do barulho no Congresso, o noticiário das emissoras de TV envolvidas ignora o escândalo.

Vale ressaltar que a cobertura da mídia brasileira ao episódio também é tímida, sobretudo na imprensa convencional.

O assunto é delicado. A reportagem do NYT demonstra que houve situações em que as emissoras não tinham ciência do estratagema.

Elas também teriam sido manipuladas ou permitiram a sua manipulação, neste caso. Em outros, teriam participado dela. Em todos, a situação é constrangedora.

Seja como for, o atual contexto midiático favorece tal infiltração nos meios de comunicação. Afinal, há hoje muito mais canais de propagação de notícias e análises do que havia até recentemente. E menos cuidado no trato delas.

De um lado, a mídia tem 24 horas de informação e faturamento. Do outro, fontes poderosas - como o Pentágono - usam farta munição (com o perdão do trocadilho) para ocupar os espaços na programação.

O problema se agrava em circunstâncias favoráveis à formação da idéia única, como no pós-11 de Setembro. A sociedade norte-americana parecia, naquele momento, suscetível a engolir um discurso maciço que dispensa o contraditório.

Há outras menos claras, mas não menos agudas. No Brasil, em vários segmentos do noticiário não basta mudar de canal para encontrar visões diversas entre si.

De forma geral, a análise política na grande mídia é muito uniforme e bebe das mesmas fontes. A econômica talvez seja ainda mais unânime.

É muito comum ver matérias de telejornais sobre consumo, inflação, juros, aplicações, etc, que ouve a opinião de um "especialista". Não raro, tal "voz do mercado" é identificada pelo gerador de caracteres apenas como "economista".

Curioso notar que muitos são parecidos inclusive fisicamente entre si. São jovens executivos de bancos, escalados para exercer o papel de especialista de determinado mercado. A mídia compra de olhos fechados - ou abertos.

É fato que os interesses de um agente de mercado como um banco não necessariamente coincidem com o interesse da população.

Mesmo assim, a imprensa muitas vezes não identifica o seu posicionamento como a de um determinado setor da economia, uma ponta legítima da tensão estabelecida em cada história, em cada conflito - sim, porque se não há tensão, qual é a notícia?

Ao contrário, o "especialista" é apresentado como um observador externo, cujo único interesse é fazer uma análise independente do fenômeno abordado.

O mesmo ocorre com as empresas de consultoria econômica, cada vez mais presentes na mídia. De fácil acesso e dispostas a falar sobre tudo, tais fontes ocupam boa parte do espaço para "reflexão".

Esta "reflexão' constrói diversas unanimidades: "Brasil, o país dos impostos"; "É preciso juros altos para conter a inflação"; "O governo tem que cortar gastos", etc.

Trata-se de uma situação favorável para escritórios de advocacia ocuparem o noticiário com novos estudos reveladores do aumento da carga tributária e, assim, divulgarem seu novo produto de "planejamento tributário".

Para as tais consultorias, formadas por ex-funcionários do alto escalão do Banco Central e Ministério da Fazenda, também divulgarem sua ciência e serviços.

Mas nenhum deles gosta de entrar no contraditório. No fato do setor exportador não querer a mesma reforma tributária que o financeiro. Que muitos estados não querem as mesmas mudanças que São Paulo. Que os bancos adoram juros altos.

Jorge da Cunha Lima, presidente do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta, mantenedora da TV Cultura, afirma que há cerca de 100 fontes que dominam o noticiário no Brasil, e "elas servem ao sistema financeiro".

O fato da nossa mídia - como a norte-americana e muitas outras, nos últimos anos - ter adquirido o costume de não identificar bem suas fontes e fugir do contraditório fortalece este tipo de afirmação.


Fonte: Por Ricardo Kauffman, in terramagazine.terra.com.br

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