Atualmente há uma tendência a um maior controle sobre as corporações. A estrutura de governança corporativa no capitalismo atual aparentemente está mudando com a inclusão direta e indireta dos consumidores, que passam a agir como eleitores, em seus atos de compra e em movimentos sociais. As corporações então se veem constrangidas, mais do que no passado, pela lei e pela mudança de valores de consumidores e gestores. Não se tornaram mais responsáveis ou boazinhas, continuam buscando o lucro, só que agora em um ambiente político, social e institucional muito mais crítico. As empresas se importam com sua sustentabilidade financeira, porém, a própria lógica do capitalismo, a busca do lucro, tão ingenuamente criticada por ambientalistas e críticos de esquerda, transformará o risco em oportunidade, na medida em que as corporações introduzirem em suas estratégias competitivas a agregação de valor social e ambiental ao consumidor. A corporação do século 21 vai criar, pela lógica da busca do lucro, os mecanismos do próprio controle, como um psicopata ciente da necessidade do uso de sua medicação. No futuro, a bondade será lucrativa. Leia e comente o artigo do economista Marcos Fernandes Gonçalves da Silva.
Prêmio Nobel de Economia de 1998, Amartya Sen produziu dois interessantes artigos, um mais recente, e outro, de 2004, que tratam de duas questões que, a meu ver, estão relacionadas: como combinar competição, iniciativa privada, busca do lucro, enfim, capitalismo, com responsabilidade social e ambiental? No primeiro artigo, o mais recente, o tema é a crise de 2008; no segundo, o problema da sustentabilidade em geral. Eles conseguem nos dar algumas pistas para não somente desmitificar a questão da sustentabilidade mas também construir uma visão realista sobre o tema. Particularmente, prefiro o termo sustentabilidade, em vez de responsabilidade social e ambiental. Qual a justificativa para isso? O objetivo deste artigo é exatamente demonstrar não somente a conveniência mas também a razoabilidade de se usar o primeiro termo.
Basicamente, Sen argumenta que a crise de 2008 mostra como devemos voltar às bases do capitalismo, aos seus fundamentos morais, sem perder de vista as virtudes da competição empresarial e da economia de mercado. Nas minhas palavras, não nas dele, a sustentabilidade da economia de mercado e das corporações depende de regulação, da lei, de valores morais e de regras de conduta que visem o bem comum.
A principal instituição do capitalismo é a corporação. Na verdade, quando falamos de corporações levamos em consideração grandes empresas de capital aberto, que possuem, em geral, atuação internacional e operam em ambientes extremamente competitivos e oligopolizados. As empresas, porém, nem sempre se organizaram dessa forma. A estrutura de governança corporativa no capitalismo clássico, aquele que podemos delimitar temporalmente entre o final do século 18 e meados do 19, pressupunha, em geral, empresas com controle familiar do capital, havendo coincidência entre a figura do dono e do gestor. A estrutura de governança não envolve somente esse aspecto mas também, como a sociedade organizada na forma de consumidores, comunidades e acionistas, controla, direta ou indiretamente, as corporações.
CAPITALISMO SELVAGEM - No contexto da formação da economia de mercado, simplesmente não havia nenhuma preocupação com consumidores, trabalhadores, comunidade e meio ambiente. Podemos chamar esse primórdio do capitalismo de “selvagem”. Foi esse sistema que Karl Marx criticou ferozmente. Mas Marx viria a errar, pois o capitalismo mudaria, assim como as empresas.
Ao longo da segunda metade do século 19, as empresas, nas economias que se desenvolviam rapidamente, começaram a abrir cada vez mais seu capital. Nesse momento, acionistas passam a possuir ações, enquanto a gestão fica a cargo de administradores profissionais. Uma barreira, que impedia um controle mais eficiente, porém complexo, das empresas, é rompida.
Até a década de 70, pouca coisa mudou e, entre os “participantes” da empresa, não se incluíam consumidores, trabalhadores e comunidades. Mas, a partir de então, algo de significativo aconteceu, capaz de mudar a face do capitalismo. Movimentos de esquerda, desiludidos com o chamado “socialismo real”, com o comunismo e com as falsas utopias marxistas, abraçam a causa do ambientalismo. O surgimento do partido verde na alemanha é um marco, bem como os movimentos ambientalistas organizados na sociedade civil. As corporações tiveram de se adaptar, inicialmente pela força da lei, ao controle indireto de suas ações e aos interesses organizados dos ambientalistas. Todavia, durante os anos 80 e 90, consumidores e comunidades começaram a exercer maior accountability sobre a ação das corporações.
Atualmente há uma tendência a um maior controle sobre as corporações. Controle esse que se amplifica na medida em que alguns grupos de acionistas se recusam a investir em empresas e setores considerados “moralmente pouco aceitáveis”, seja por causa dos danos ao meio ambiente, seja pela forma como tratam colaboradores, seja por questões políticas e sociais. A estrutura de governança corporativa no capitalismo atual aparentemente está mudando – sim, este processo mal começou, é gerúndio –, com a inclusão direta e indireta dos consumidores, que passam a agir como eleitores, em seus atos de compra e em movimentos sociais.
As corporações continuam as mesmas: buscam o lucro e devem fazê-lo. Contudo, elas se veem constrangidas, mais do que no passado, pela lei e pela mudança de valores de consumidores e gestores. Não se tornaram mais responsáveis ou boazinhas; não devem, a princípio, pensar em outra coisa senão o lucro. O que ocorre é que lidam agora com um ambiente político, social e institucional mais crítico.
Amartya Sen, no primeiro artigo citado, procura argumentar que a crise de 2008 abre espaço para uma discussão sobre os valores dentro do capitalismo e sobre as funções de uma economia de mercado que estão associadas à geração do maior bem-estar coletivo, com a minimização dos malefícios causados pela competição e pela busca do lucro. Passa a ser interesse dos acionistas, e do capitalismo, a sustentabilidade do sistema, no sentido amplo do termo. No segundo artigo citado por sen, o foco é outro – desenvolvimento e meio ambiente – mas está relacionado com o primeiro. O desenvolvimento é a busca de bem-estar máximo, minimizando-se os custos da competição e da busca sem fim do lucro – como a poluição e o aquecimento global. Mas o bem-estar das gerações futuras depende do que é feito no presente. Logo, passar males para as gerações futuras, como a degradação ambiental, é algo imoral. Portanto, as ações das corporações devem ser controladas, se as gerações atuais forem altruístas, para evitar danos futuros.
Este é o ponto: nada muda se a comunidade e os consumidores, bem como os acionistas, não desejarem! Não podemos compartilhar aqui a visão pouco útil, ingênua e, por vezes, cínica, segundo a qual as empresas se importam com “responsabilidade socioambiental”. As empresas se importam com sua sustentabilidade financeira e devem fazê-lo, já que precisam gerar benefícios aos donos do capital, os acionistas. Porém, se serve de consolo, a sustentabilidade das corporações, aparentemente, começa a depender de ações sustentáveis do ponto de vista social e ambiental, pois, do contrário, consumidores e até acionistas as penalizam.
A própria lógica do capitalismo, a busca do lucro, tão ingenuamente criticada por ambientalistas e críticos de esquerda, transformará o risco em oportunidade, na medida em que as corporações introduzirem em suas estratégias competitivas a agregação de valor social e ambiental ao consumidor. A corporação do século 21 – e isso nem marx percebeu – é tão astuta que cria, pela lógica da busca do lucro, os mecanismos do próprio controle, como um psicopata ciente da necessidade do uso de sua medicação.
É falso dizer que as corporações são responsáveis. Verdadeiro é afirmar que elas o são, um pouco a contragosto, no presente. Contudo, no futuro, serão muito responsáveis – e o serão com muita voracidade –, pois a bondade, para elas, será lucrativa. Um bom negócio, enfim.
Fonte: Por Marcos Fernandes Gonçalves da Silva - coordenador do centro de estudos dos processos de decisão da FGV-SP, in Época Negócios
Prêmio Nobel de Economia de 1998, Amartya Sen produziu dois interessantes artigos, um mais recente, e outro, de 2004, que tratam de duas questões que, a meu ver, estão relacionadas: como combinar competição, iniciativa privada, busca do lucro, enfim, capitalismo, com responsabilidade social e ambiental? No primeiro artigo, o mais recente, o tema é a crise de 2008; no segundo, o problema da sustentabilidade em geral. Eles conseguem nos dar algumas pistas para não somente desmitificar a questão da sustentabilidade mas também construir uma visão realista sobre o tema. Particularmente, prefiro o termo sustentabilidade, em vez de responsabilidade social e ambiental. Qual a justificativa para isso? O objetivo deste artigo é exatamente demonstrar não somente a conveniência mas também a razoabilidade de se usar o primeiro termo.
Basicamente, Sen argumenta que a crise de 2008 mostra como devemos voltar às bases do capitalismo, aos seus fundamentos morais, sem perder de vista as virtudes da competição empresarial e da economia de mercado. Nas minhas palavras, não nas dele, a sustentabilidade da economia de mercado e das corporações depende de regulação, da lei, de valores morais e de regras de conduta que visem o bem comum.
A principal instituição do capitalismo é a corporação. Na verdade, quando falamos de corporações levamos em consideração grandes empresas de capital aberto, que possuem, em geral, atuação internacional e operam em ambientes extremamente competitivos e oligopolizados. As empresas, porém, nem sempre se organizaram dessa forma. A estrutura de governança corporativa no capitalismo clássico, aquele que podemos delimitar temporalmente entre o final do século 18 e meados do 19, pressupunha, em geral, empresas com controle familiar do capital, havendo coincidência entre a figura do dono e do gestor. A estrutura de governança não envolve somente esse aspecto mas também, como a sociedade organizada na forma de consumidores, comunidades e acionistas, controla, direta ou indiretamente, as corporações.
CAPITALISMO SELVAGEM - No contexto da formação da economia de mercado, simplesmente não havia nenhuma preocupação com consumidores, trabalhadores, comunidade e meio ambiente. Podemos chamar esse primórdio do capitalismo de “selvagem”. Foi esse sistema que Karl Marx criticou ferozmente. Mas Marx viria a errar, pois o capitalismo mudaria, assim como as empresas.
Ao longo da segunda metade do século 19, as empresas, nas economias que se desenvolviam rapidamente, começaram a abrir cada vez mais seu capital. Nesse momento, acionistas passam a possuir ações, enquanto a gestão fica a cargo de administradores profissionais. Uma barreira, que impedia um controle mais eficiente, porém complexo, das empresas, é rompida.
Até a década de 70, pouca coisa mudou e, entre os “participantes” da empresa, não se incluíam consumidores, trabalhadores e comunidades. Mas, a partir de então, algo de significativo aconteceu, capaz de mudar a face do capitalismo. Movimentos de esquerda, desiludidos com o chamado “socialismo real”, com o comunismo e com as falsas utopias marxistas, abraçam a causa do ambientalismo. O surgimento do partido verde na alemanha é um marco, bem como os movimentos ambientalistas organizados na sociedade civil. As corporações tiveram de se adaptar, inicialmente pela força da lei, ao controle indireto de suas ações e aos interesses organizados dos ambientalistas. Todavia, durante os anos 80 e 90, consumidores e comunidades começaram a exercer maior accountability sobre a ação das corporações.
Atualmente há uma tendência a um maior controle sobre as corporações. Controle esse que se amplifica na medida em que alguns grupos de acionistas se recusam a investir em empresas e setores considerados “moralmente pouco aceitáveis”, seja por causa dos danos ao meio ambiente, seja pela forma como tratam colaboradores, seja por questões políticas e sociais. A estrutura de governança corporativa no capitalismo atual aparentemente está mudando – sim, este processo mal começou, é gerúndio –, com a inclusão direta e indireta dos consumidores, que passam a agir como eleitores, em seus atos de compra e em movimentos sociais.
As corporações continuam as mesmas: buscam o lucro e devem fazê-lo. Contudo, elas se veem constrangidas, mais do que no passado, pela lei e pela mudança de valores de consumidores e gestores. Não se tornaram mais responsáveis ou boazinhas; não devem, a princípio, pensar em outra coisa senão o lucro. O que ocorre é que lidam agora com um ambiente político, social e institucional mais crítico.
Amartya Sen, no primeiro artigo citado, procura argumentar que a crise de 2008 abre espaço para uma discussão sobre os valores dentro do capitalismo e sobre as funções de uma economia de mercado que estão associadas à geração do maior bem-estar coletivo, com a minimização dos malefícios causados pela competição e pela busca do lucro. Passa a ser interesse dos acionistas, e do capitalismo, a sustentabilidade do sistema, no sentido amplo do termo. No segundo artigo citado por sen, o foco é outro – desenvolvimento e meio ambiente – mas está relacionado com o primeiro. O desenvolvimento é a busca de bem-estar máximo, minimizando-se os custos da competição e da busca sem fim do lucro – como a poluição e o aquecimento global. Mas o bem-estar das gerações futuras depende do que é feito no presente. Logo, passar males para as gerações futuras, como a degradação ambiental, é algo imoral. Portanto, as ações das corporações devem ser controladas, se as gerações atuais forem altruístas, para evitar danos futuros.
Este é o ponto: nada muda se a comunidade e os consumidores, bem como os acionistas, não desejarem! Não podemos compartilhar aqui a visão pouco útil, ingênua e, por vezes, cínica, segundo a qual as empresas se importam com “responsabilidade socioambiental”. As empresas se importam com sua sustentabilidade financeira e devem fazê-lo, já que precisam gerar benefícios aos donos do capital, os acionistas. Porém, se serve de consolo, a sustentabilidade das corporações, aparentemente, começa a depender de ações sustentáveis do ponto de vista social e ambiental, pois, do contrário, consumidores e até acionistas as penalizam.
A própria lógica do capitalismo, a busca do lucro, tão ingenuamente criticada por ambientalistas e críticos de esquerda, transformará o risco em oportunidade, na medida em que as corporações introduzirem em suas estratégias competitivas a agregação de valor social e ambiental ao consumidor. A corporação do século 21 – e isso nem marx percebeu – é tão astuta que cria, pela lógica da busca do lucro, os mecanismos do próprio controle, como um psicopata ciente da necessidade do uso de sua medicação.
É falso dizer que as corporações são responsáveis. Verdadeiro é afirmar que elas o são, um pouco a contragosto, no presente. Contudo, no futuro, serão muito responsáveis – e o serão com muita voracidade –, pois a bondade, para elas, será lucrativa. Um bom negócio, enfim.
Fonte: Por Marcos Fernandes Gonçalves da Silva - coordenador do centro de estudos dos processos de decisão da FGV-SP, in Época Negócios
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